Maldita Carência


Dizem por aí que vivemos em um mundo bem perigoso. Concordo. Ouço muita gente alertando sobre os perigos inerentes ao consumo do cigarro, do álcool, das drogas, dos hambúrgueres e até de água em demasia. A vida é assim, realmente cheia de perigos, e acho que devemos continuar apontando para tais venenos e, assim, impedindo que desavisados os bebam, pensando que estão engolindo a coisa certa. É o que farei neste texto. Falarei sobre uma Cicuta pouco comentada nos dias de hoje, mas não menos mortal e nem menos capaz de criar eventos apocalípticos e bombas-relógio. Não falarei sobre o colesterol nem sobre as gorduras saturadas. Deixarei isso para as cento e quarenta e sete revistas especializadas em saúde. Não falarei da violência. Desta vez, deixarei o tema para as rodas barulhentas de senhorinhas que vivem amedrontadas, e com toda a razão. Hoje, falarei da maldita carência e do quanto ela, aparentemente inofensiva, tem o poder de nos cegar completamente e nos fazer aceitar riscos evidentes, como quem aceita mais um pedaço de bolo de cenoura feito pela avó.

Tentando suprir a falsa lacuna aberta pelas carências, muitas vezes advinda da incapacidade de entendermos o lado bom da solidão, pessoas atiram-se, sem pestanejar, no primeiro carro que encosta na esquina e buzina. Quem de vocês não tem um amigo que é visivelmente incapaz de viver sozinho? Quem de vocês, meus caros, não conhece alguém que prefere namorar pedaços de lixo, em vez de conviver bem com o próprio corpo?

Não estou dizendo que precisamos viver sozinhos e isolados como um náufrago em uma ilha deserta, não é nada disso. Mas muitas vezes somos movidos por uma carência que nem carência é. Uma fome inventada pela sociedade que vive repetindo frases do tipo: “Essa daí, se não agir rápido, ficará pra titia”. É ótimo ter alguém para completar nossas rimas e preencher nossos lençóis, mas quem foi que disse que isso é tão vital, a ponto de deixarmos de lado os mínimos critérios de seleção?

Desde pequenos somos treinados para caçar um par, mas nem sempre nos dizem que, antes disso, precisamos entender que nosso melhor complemento deve necessariamente ser nosso próprio ser. Nascemos e, assim que damos o primeiro passo para fora do útero, implantam em nossas cabeças frágeis e ainda de moleiras abertas a necessidade de procurarmos nossa outra metade da laranja, a tampa da nossa panela ou o queijo de nossa goiabada. Quem será o ser amedrontado que disse que sozinhos seremos sempre infelizes?

Incompletos mesmos são os seres que não dão valor ao próprio corpo e aliam-se ao primeiro bunda-mole que conhecem, com medo de não ter companhia para ir ao cinema ou para dividir a sobremesa. Prefiro ver um filme sozinho a carregar comigo, pra dentro da sala, alguém que serve somente como garantia contra a solidão. A carência excessiva é tão maléfica, que faz com que certas pessoas medrosas ocupem o nobre espaço do coração com seres que nada acrescentam e, pior, ao fazer isso, agem como os esfomeados, que nos rodízios de carne, empanturram o estômago com as entradas e, assim, não deixam espaço para os nobres cortes, como as picanhas, por exemplo.

Ouvi alguém dizendo que mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Isso pode até servir quando estamos morrendo de fome real ou quando aceitamos qualquer emprego porque precisamos pagar as contas. Mas, quando o assunto é ter alguém para nos fazer alguém melhor, então sugiro que deixe os urubus voarem e que descubra as belezas de sua própria gaiola. Só assim, deixará seu poleiro livre para o pouso de pássaros interessantes. E, enquanto ninguém pousa em sua vida, tenha calma, respire fundo, aprenda a se divertir com as tantas coisas boas que ganhou assim que nasceu e nunca, nem no dia mais frio do ano, deixe que a carência roube seu poder de seleção. Ou envelhecerá colocando a culpa no destino e sofrerá calada por ter aceitado, algum dia, alguém também disposto a morrer regado pelo comodismo.

Diga “pode ser” ao próximo garçom que te oferecer uma Pepsi quando não houver mais Coca-Cola, mas nunca, por nada no mundo, deixe que a carência a permita dizer “pode ser” para o próximo qualquer que o acaso lhe oferecer.

por Ricardo Coiro, do blog Casal sem Vergonha

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